Ex librista Digital | O Blog do BITS

"Ex libris" significa "dos livros de", é também uma vinheta que se cola nos livros com o nome do proprietário. O BITS, Grupo de Pesquisa Informação, Cultura e Práticas Sociais, é a vinheta sob a qual discutimos interesses diversos ligados às Ciências Humanas e realizamos nossas leituras sobre o mundo atual. Reforçamos aqui este caráter de buscador de conhecimentos, de reflexões sobre o mundo e a vida nessa sociedade digital.

quinta-feira, setembro 02, 2021

Pesar

Este domingo (29/08/2021) fomos surpreendidos com a notícia do falecimento do Prof. Mauro Koury. Com o seu desaparecimento, abre-se uma lacuna na Sociologia e Antropologia brasileiras notadamente nas pesquisas sobre Sociologia da Imagem e Sociologia das Emoções. 

Mauro sempre teve a capacidade de identificar abordagens originais, tanto na Sociologia quanto na Antropologia. Foi assim que abrigou minhas temáticas de pesquisa no mestrado, quando eu quis pesquisar sobre a Ideia de progresso através das lentes dos fotógrafos paraibanos do final do século XIX e início do século XX (1994-1996) e posteriormente quando iniciou minha orientação quando eu quis trabalhar uma temática pouco usual na sociologia sobre o Sofrimento Social novamente através das lentes jornalísticas na Folha de Pernambuco (2000-2004). Neste período, ele iniciava seus dois grupos de pesquisa GREI - Grupo de Estudos sobre Imagem e o GREM - Grupo de Pesquisa em Sociologia das Emoções, mais tarde incorporando o termo Moralidades, que ganharam dimensão muito maior posteriormente, graças a sua capacidade de trabalho e de agregar pessoas em volta de seus projetos.

Fortaleza (2014)


II Simpósio Interdisciplinar de Pós-Graduação em
Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN, 2014)



V Reunião Equatorial de Antropologia /
XIV Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste (Maceió, 2015)

V Reunião Equatorial de Antropologia /
XIV Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste (Maceió, 2015)

V Reunião Equatorial de Antropologia /
XIV Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste (Maceió, 2015)


Passeio à praia de Cumbuco - CE (2015)

A última vez que nos encontramos pessoalmente foi em um passeio à praia de Cumbuco - CE, em 2015. Dia agradável para celebração de uma amizade que surgiu a partir de discussões acadêmicas, dos trabalhos e cobranças relativas à atividade científica, porém se consolidou ao longo dos anos para reuniões ao redor de uma mesa de bar, de bons papos e troca de ideias sobre a vida. Eventualmente Mauro veio cumprir compromissos acadêmicos na universidade, e algumas vezes nem chegamos a nos encontrar no mesmo espaço. Nossos contatos, nos últimos anos, eram conversas através de whatsapp nas tardes de domingo para trocar impressões sobre as banalidades da vida. Vou sentir muita falta dessas trocas de ideias, quando a gente deixava disparar a imaginação sociológica e traçar projetos que talvez nem se realizassem.

Descanse em paz professor, mestre e amigo Mauro Koury.

domingo, agosto 22, 2021

Galeria de Arquitetura

 O NORTE - DOMINGO - 2 DE JANEIRO DE 1994    VARIEDADES - 2°. 2


Jornal O Norte
   
        Já faz uns bons vinte e sete anos que escrevi esse texto para o Jornal O NORTE de João Pessoa. Havia a vontade de discutir pequenos problemas urbanos, algumas pequenas coisas que quase passam despercebidas na lida cotidiana, mas que somos surpreendidos ao nos darmos conta que não moramos em outra cidade e que talvez a cidade da memória é imaginária. Vão se perdendo o convívio nos espaços públicos e vamos ficando cada vez mais prisioneiras dos nossos medos e das inseguranças, prisioneiros de uma bolha. Havia mesmo a vontade de ser uma observadora da consistente da cidade, uma flaneur, porém o espírito aventureiro de flanar nos espaços, muitas vezes, com uma máquina fotográfica pendurada no pescoço (hoje algo fora de moda) foi desaparecendo. Talvez com a fotografia eu tivesse mais a dizer e sempre perdia a noção do tempo ao observar a vida mediada por uma objetiva.


Por uma teoria do direito e rock: representações do direito no rock de Raul Seixas

 


OLIVEIRA, Amanda Muniz. Por uma teoria do direito e rock: representações do direito no rock de Raul Seixas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

    Resultado da pesquisa de mestrado de Amanda Muniz Oliveira, o livro "Por uma teoria do direito e rock: representações do direito no rock de Raul Seixas" é uma obra interessante que pode ser inserida nos chamados "estudos sociojurídicos": pesquisas que analisam as interações entre direito e sociedade. Nesse paradigma, o direito é compreendido como fenômeno social, que, ao contrário de configurar-se como apartado ou isolado da realidade, está em constante diálogo com ela. Mais que isso, essas investigações consideram o direito não apenas como o conjunto de normas produzidas no âmbito estatal, considerando também aquelas produzidas em relações cotidianas, instituições não-estatais e mesmo relações subjetivas entre diferentes grupos e o poder público.  Nesse sentido, Oliveira explora, nesse livro, as representações feitas sobre o direito nas músicas de um dos ícones mais marcantes da cultura pop brasileira no século XX: Raul Seixas.

CONTEXTO
    
    Oliveira contextualiza seu livro na área de estudos conhecida como "direito e literatura" ou "direito e arte", mas parte sua investigação a partir de limitações que percebe no contexto geral desses estudos. Ela critica o foco desses trabalhos na descrição de narrativas jurídicas em obras clássicas e eruditas, especialmente da literatura internacional. Pouco espaço tem sido dado à cultura de massas, embora essa tenha um maior potencial de diálogo com o público. O campo que poderia ser delimitado como "direito e música", assim, seria promissor, havendo muito o que ser explorado no que diz respeito a representações do fenômeno jurídico. 
    No livro, a autora propõe-se a abrir caminhos para os estudos em "direito e música", reconhecendo as interações entre cultura pop e sociedade a partir da ótica dos estudos culturais críticos. Sua intenção central, portanto, não é a de inserir-se nos estudos sociojurídicos sobre relações subjetivas entre direito e sociedade, embora também o faça, mas a de explorar as possibilidades de pesquisas jurídicas a partir de obras musicais.

POR QUE ESTUDAR O ROCK?

    No segundo capítulo, Oliveira explora discussões sobre a possibilidade (e utilidade) do estudo de elementos da cultura pop, a exemplo de ritmos musicais como o rock. Ela contextualiza o debate nas tensões entre os pensamentos da Escola de Frankfurt (especialmente os textos de Theodor Adorno) e os estudos culturais (em especial os da Escola de Birmingham). 
    Por um lado, Adorno veria a mídia e em particular a música (não apenas a de massas, mas também a erudita) com um olhar pessimista. Para ele, a indústria musical articula-se com o objetivo de reforçar a alienação do público, em uma estratégia de manutenção da ordem vigente, desfavorecendo os interesses dos mais vulneráveis na luta de classes.
    Por outro lado, os estudos culturais desmistificam a imagem da audiência passiva reforçada por Adorno. Independente das intenções que orientam a produção de uma obra musical ou qualquer outra mídia cultural, o público não necessariamente o recebe acriticamente. Isso também não implica, por outro lado, em uma percepção ingênua do público como blindado contra influências exercida pela mídia de massas. Essas relações envolveriam, portanto, diálogos marcados por contingências: uma obra musical transmite uma mensagem que não necessariamente será absorvida ou acatada pelo público; a sociedade partilha valores e ideias que não necessariamente serão incorporadas pela mídia de massas. Mesmo assim, ainda mais considerando-se o objetivo de lucro da indústria cultural, ocorrem diálogos bilaterais nesse processo, sendo possível perceber modulações da mídia aos interesses de seu público.
    Oliveira conclui seu capítulo analisando a história do rock enquanto gênero musical: suas diferentes vertentes, seus ícones e seus marcos temporais relacionam-se fortemente com o contexto sociopolítico daquele momento. Estudar obras musicais e, no caso desse livro, composições de rock, pode possibilitar a compreensão de algumas interações, movimentos e subjetividades de grupos sociais em uma determinada época.

DIREITO E MÚSICA: COMO ESTUDAR

    No terceiro capítulo, a autora apresenta sua revisão bibliográfica de pesquisas na área de direito e música, explorando suas potencialidades e limitação. Ela organiza o estado da arte em cinco perspectivas: "direito, música e interpretação"; "analogias entre direito e música"; "direito e teoria musical", "direito, música e sociedade" e "críticas às abordagens entre direito e música".
    A primeira perspectiva reúne trabalhos preocupados em compreender estratégias de interpretação empregadas no direito a partir de conceitos da interpretação na música. Oliveira avalia que esses estudos concentram-se no fenômeno de interpretação em si, levado a um sentido amplo, e as interações entre direito e música, e mesmo o estudo de direito ou música enquanto fenômenos sociais, são dispensados a um segundo plano.
    A segunda envolve equiparações entre os campos jurídico e musical a partir de metáforas que os aproximam. A autora considera esses esforços úteis para fins pedagógicos, mas delicados para adotar como caminhos enquanto linha de pesquisa, visto sua abertura praticamente ilimitada à imaginação do pesquisador. Ainda, esses estudos também dão pouca consideração a obras musicais de maneira mais concreta, o que os tornam de pouca contribuição ao caminho que ela pretende adotar.
    A terceira perspectiva foi resumida a apenas um trabalho identificado pela autora, que analisava a possibilidade de aplicação da categorias jurídicas à teoria musical e vice-versa. Embora inovadora, essa iniciativa também não aprofunda-se em obras musicais e seus aspectos sociais.
    A quarta aproxima-se da perspectiva de Oliveira, considerando representações musicais de valores vigentes em determinados períodos históricos como expressões de relações entre direito e sociedade. Essas pesquisas, sobretudo no Brasil são recentes e exploratórias e, na avaliação da autora ainda carecem de uma maior solidez teórica e metodológica, caminho esse a ser explorado nesse campo de estudos. Tomando como exemplo, posteriormente, trabalhos que tratam especificamente de "direito e rock", ela percebe que eles limitam-se à análise de letras musicais. A música, assim, é isolada enquanto poesia, ignorando-se questões como a trajetória do intérprete ou compositor, a melodia, o ritmo e outros aspectos relacionados à performance musical.
    A quinta perspectiva, por fim, envolve textos preocupados em criticar aproximações entre direito e música. No entanto, Oliveira percebe que eles atentam essencialmente à dogmática jurídica, isto é, à "operação do direito". As críticas dirigem-se a tentativas de incorporar a linguagem musical em peças processuais no sistema de justiça, e não às possibilidades de produção do conhecimento. Desse modo, tais críticas não dialogam com o escopo do livro.
    Diante dessas limitações, Oliveira parte de dois autores para assentar o desenvolvimento de seu trabalho. Como desenho teórico, ela centra-se nas contribuições de Douglas Kellner, que explora as relações entre mídia, ideologia e sociedade, localizando possíveis transposições para o estudo do direito enquanto fenômeno social. Como desenho metodológico, ela parte das contribuições do historiador Marcos Napolitano, que propõe estratégias de estudo de obras musicais como documentos, considerando os múltiplos elementos que envolvem sua composição e execução. A partir desses aportes, Oliveira analisa a obra de Raul Seixas, em busca de compreender as representações do direito feitas pelo cantor.

RAUL SEIXAS E O DIREITO

    No quarto capítulo, a autora parte para a análise da obra musical de Raul Seixas. Antes disso, no entanto, ela faz um resumo da biografia do músico, concentrando-se em suas relações com o ocultismo, sobretudo com as ideias de Aleister Crowley, e com o anarquismo, embora, em diversos momentos, Raul Seixas tenha demonstrado que seus pensamentos ideológicos são contingentes e particulares (além de várias entrevistas em que tratou do assunto, pode-se pensar em "Metamorfose ambulante" ou nos versos de "Raul Seixas na Cidade de Thor" que dizem "Eu que já passei por todas as religiões, filosofias políticas e lutas / Aos onze anos de idade, eu já desconfiava da verdade absoluta").
    Para seu estudo, Oliveira reuniu as letras de canções de Raul Seixas e buscou por palavras-chave diretamente relacionadas ao direito ("direito", "lei", "código", "advogado", "juiz" etc.). No entanto, ao analisar as obras, ela não ateve-se a sua letra, considerando aspectos como melodia, recepção do público, contexto da biografia do compositor, álbum de lançamento (conjunto de canções e capa). Considerando a obra do artista e o período histórico do Brasil, a exposição dos resultados foi dividida em músicas lançadas nos anos 1970 e 1980.
    Os anos 70 foram um período conturbado da Ditadura Militar no Brasil. Nesse momento, também, Raul Seixas encontrava-se mais próximo do ocultismo de Aleister Crowley: a "sociedade alternativa" era fortemente ligada à Lei de Thelema, que dizia "faz o que tu queres, que há de ser tudo da lei", e essa ética estava presente na musicografia do baiano. No período, foram encontradas menções a elementos associados ao direito em quatro canções: "Sociedade alternativa" (1974), "Novo Aeon"(1975), "Sapato 36"(1977) e "A ilha da fantasia" (1979).
    As duas primeiras músicas da lista estavam completamente inseridas na proposta de difundir a Lei de Thelema. Trata-se de uma representação do fenômeno jurídico, sem dúvidas, mas não do direito do Estado, e sim de um direito natural, metafísico. Em suas performances em palco de "Sociedade alternativa", Raul Seixas tinha como costume ler um pergaminho contendo o texto integral da lei, nas palavras de Crowley traduzidas para o português. Uma ordem espiritual das coisas assentadas na mais absoluta liberdade e respeito à individualidade. Esse direito natural pode ter sido evocado como saída à ordem jurídica da época, instituída pelo governo ditatorial.
    As duas últimas revelam um certo afastamento da Lei de Thelema, embora sua inspiração permaneça presente. Em "Sapato 36", Raul Seixas queixa-se tristemente de um pai que o faz calçar um sapato menor do que o seu pé, o que lhe provoca um sentimento de desconforto e opressão, uma alusão às relações que o compositor percebia entre Estado e sociedade. Em "Ilha da fantasia", ele conversa alegremente com um navegador que busca uma terra melhor, onde ele não precisaria viver "sob as leis que não criou". Aqui, mais uma vez, há uma crítica ao Estado e é traçado um horizonte de vida mais digna, baseada em um direito natural. Aqui, Oliveira percebe uma transição do direito natural defendido por Raul Seixas, afastando-se do ocultismo e aproximando-se do anarquismo, o que também é expresso em uma guinada de suas composições, do espiritual para o político.
    Essa tendência também foi observada nos anos 80, quando o Brasil estava no processo de abertura política. Nesse período, Oliveira identificou seis canções com alguma referência a elementos associados ao direito: "Anos 80" (1980), "Conversa pra boi dormir" (1980), "À beira do pantanal" (1980), "Quando acabar o maluco sou eu" (1987), "Cowboy fora da lei" (1987) e "A lei" (1988).
    As duas primeiras canções, de algum modo, revelam uma descrença do compositor em melhorias na ordem jurídica brasileira com a redemocratização: em "Anos 80", música cantada em velocidade tal que é difícil acompanhar a letra, há a referência a um juiz isolado da sociedade, alheio a suas necessidades; em "Conversa pra boi dormir", o eu-lírico diz possuir um direito, mas que está escondido, e faz referência a um jogo de "quente e frio", ao dizer "tá ficando quente". Aqui, ele refere-se à promessa de democracia, mas, ao mesmo tempo, ele não consegue encontrá-la, mesmo que esteja "ficando quente". As promessas de mudanças no direito estatal, assim, são percebidas com descrença, o que também pode revelar um pensamento corrente em parte da sociedade da época. Essa posição descrente está associada ao descrédito nos operadores do direito, o que também é revelado em "Quando acabar o maluco sou eu", no qual Raul Seixas descreve, com humor, um advogado que lhe diz que o governo, a polícia e a censura "são tudo gente fina". Em "Cowboy fora da lei", igualmente, estar "na lei" significaria concordar com ações e posturas das quais ele não partilhava; "entrar na lei" seria, portanto, um risco para alguém como ele.
    Em "À beira do pantanal", música melancólica que descreve um assassinato, é feita uma referência ao direito penal. Não é feito juízo de valor sobre esse ramo jurídico, mas ele é descrito como eficaz em condenar o culpado. Mesmo que não seja a intenção direta do compositor, assim, essa canção revela uma percepção de que o direito estatal funciona quando cumpre seu papel ostensivo e punitivo, na leitura da autora.
    Em "A lei", Raul Seixas retome referências à Lei de Thelema, mais uma vez enunciando expressamente frases de Aleister Crowley. No entanto, em contraste com "Sociedade alternativa", ele parece afastar essas noções do plano espiritual característico do ocultismo, dando-lhes um teor mais político. Aqui, Raul Seixas reforça o que pode ser entendido como um apanhado das representações do direito em sua obra: de um lado, há o direito do Estado, autoritário e cujo papel resume-se a tolher as liberdades individuais, só funcionando plenamente em seu braço punitivista; de outro, há um direito natural, pautado na liberdade e na individualidade, que poderia conduzir a sociedade a dias melhores.

CONCLUSÕES
    
    Em seu livro, a autora permite refletir sobre as possibilidades de estudar o direito, enquanto fenômeno social, a partir de obras musicais. O seu argumento centra-se na percepção de que a mídia, em especial a cultura pop, trava diálogos com a sociedade ou com determinados grupos. Nesse sentido, obras musicais podem ser tratadas como documentos que registram expectativas, percepções e representações de uma época. Nesse sentido, ela contribui não apenas com as possibilidades de pesquisa em "direito e música", mas também em outras áreas de interesse dos estudos sociojurídicos. Compreender relações subjetivas entre pessoas ou grupos com o direito é um objeto atual na área de sociologia do direito, e o livro abre caminhos para enriquecer esse debate a partir de novas fontes.